sábado, 30 de outubro de 2010

A França por regiões #2 - Aquitaine (II) - Landes e Gironne

Continuando a imaginária subida pela Aquitânia, entra-se do departamento das Landes, departamento criado na sequência da Revolução Francesa e que alberga parte das antigas províncias da Guyenne e Gascogne. Criação presumivelmente política, digo eu, dada a forte identidade regional da Gasconha (D'Artagnan, lembram-se?)

A Gascogne nos seus diferentes limites ao longo dos séculos
(fonte: Wikipedia)
consubstanciada na língua que ainda hoje é falada e no espírito que não se perdeu - em 2006, o concelho geral das Landes exprimiu a sua vontade em alterar o nome do departamento para "Landes de Gascogne".

A defesa e promoção da gastronomia são efectuadas por uma associação do departamento denominada Qualité Landes - vale a pena visitar o seu site.

As Landes contam com o maior número de produtos agrícolas reconhecidos com um selo de qualidade - 7:

Le canard (pato) fermier des Landes (Label rouge)


(fonte: excelfoiegras.com - excelentes receitas de pato!)
Les volailles (aves) des Landes (Label rouge e I.G.P.), das quais se destaca o poulet fermier (frango de campo) de Saint-Sever (Label rouge)

Le bœuf de Chalosse (Label rouge e I.G.P.)


L' Asperge (espargo) des Sables des Landes (I.G.P.)


o kiwi de l'Adour (Label rouge e I.G.P.)


os vinhos de Tursan e os vins de pays des Landes (AOVDQS)


o Armagnac



e o Floc de Gascogne (AOC)

(fonte: chazallet.com - ver receitas de cocktails aqui)
A cozinha das Landes constroi-se principalmente a partir destes produtos. O pato é rei, sendo criado em incontáveis quintas tanto pela sua carne como pelo fígado o qual origina feiras renomadas, as mais importantes das quais se realizam nas cidades de Amou, Dax, Peyrehorade e Mont-de-Marsan (capital do departamento).

O pato é assim como o porco para nós, tudo se aproveitando e de tudo - como é usual no país - se fazendo produtos de referência: o foie gras (cuit, mi-cuit ou fresco), o magret (fresco, fumado ou seco), as coxas e as asas confitadas, as moelas confitadas, as rillettes e os graisserons (ou mais usualmente titiouns ou titions, palavras gascãs para graisserons).

(fonte: foiegrasmaisonparis.fr)
Um dos pratos mais tradicionais é a assiette landaise,

(fonte: www.foiegrasceres.com )
composta de espargos, milho, pinhões, presunto de Bayonne, fatias de magret fumado ou seco, coxas confitadas e foie gras.

Na pastelaria, as Landes são o berço do pastis landais


e da Tourtière (simples, com maçãs ou ameixas).

(fonte: lacuillerenbois.canalblog.com
Nas Landes situam-se grandes restaurantes, como o Prés d'Eugénie de Michel Guérard, um dos pais da nouvelle cuisine e criador da cuisine minceur, em Eugénie-les-Bains (3 estrelas Michelin)

(fonte: azzed le.blog - ler post aqui)
e em Magescq, o Relais de la Poste, de Jean Coussau, (2 estrelas Michelin),

Foie gras de canard chaux aux raisins
(prato servido no restaurante e receita a ler aqui)
Num artigo publicado em Setembro deste ano, Gilles Pudlowski descreve o menú (de 58€! compare-se com os preços de alguns restaurantes de Lisboa...): sopa de melão de Laurède refescada com granité de jurançon, foie gras quente com passas, filetes de pato lacado com mel de especiarias com mesclun de legumes e presunto, a tarte « sans fond » aux gariguettes com coulis de frutas vermelhas e sorvete de pistache. E acrescenta: " Cada estação traz, nos Coussau, o seu lote de prazeres e guloseimas. As ostras de Gillardeau, em geleia de água do mar, agrião e caviar da Aquitaine, passam o seu perfume de iodo. Os escalopes de foie gras na panela, suculentes e crocantes, flanqueados por pequenos girolles (n.t. - espécie de cogumelos) e trufas, com a sua redução douce de floc de Gascogne, o famoso salmão de l’Adour com acompanhamento de alcachofras e presunto, sem omitir o pombo e a lebre à la royale na estação da caça (está a chegar e será curta!): eis o que vos espera numa sala de refeições clara, renovada, mesmo que pareça não ter mudado há lustros.

Gironne, com capital em Bordéus


é, antes de mais, o centro de uma das mais afamadas regiões vinícolas mundiais, o Bordeaux.

Criado, como o seu vizinho próximo, na sequência da Revolução Francesa, a partir de parte das províncias da Guyenne e Gascogne, "vive" em torno dos rios Garonne e Dordogne que o atravessam e desaguam no estuário comum do Gironde.


Soulac-sur-Mer, no extremo da península é uma pequena vila veraneante, pejada de casas de madeira do princípio do século (XX), reconstruídas após a II Guerra.



O Bassin d'Arcachon, mar interior situado junto à costa, serve de berço às afamadas ostras homónimas que, durante séculos foram as "Portugaises", dizimadas por um virus nos anos 70 e substituídas pelas "Japonaises"

(fonte: 750grammes.com - receita aqui)
Bassin que merece uma visita mais prolongada, um séjour de alguns dias para recuperar baterias, visitar a duna do Pyla, a mais alta da Europa


as cabanes tchanquées, cabanas de palafitas que começaram a ser construídas como apoio de banho, sendo mais tarde aproveitadas para apoio à cultura de ostras,



ir à praia, ver os barcos, pescar e, principalmente, entreter-se a distinguir as subtis diferenças de sabor entre as ostras cultivadas no banc d'Arguin (sabor açucarado, leitoso e marítimo), na l'île aux Oiseaux (carácter poderoso, com aromas vegetais e minerais), em Cap-Ferret (aromas delicados de legumes frescos e cítricos) e no Grand Banc (sabores de frutos brancos e de avelãs torradas).

Arcachon
(fonte: Wikimedia commons)
Voltando ao vinho: 120000 hectares, 57 appellations, 8 000 châteaux, 13 000 viticultores, fazem desta região a maior produtora de vinhos finos do mundo. Deonominações como Médoc, Sauternes, Saint-Émilion; marcas como Château Lafite-Rothschild, Château Margaux, Château Latour, Château Haut-Brion, Château Mouton-Rothschild são estrelas deste imenso firmamento.

Quanto a estrelas Michelin, nada no escalão de topo, mas três 2 estrelas: o Saint James em Bordeaux-Bouliac,

(fonte: site do restaurante)
dirigido por Michel Portos, (ver aqui a sua receita de Foie gras chaud aux coquillages); o Château Cordeillan Bages em Pauillac,

(fonte: site do restaurante)
(fonte: site do restaurante)
dirigida por Jean-Luc Rocha; a Hostellerie de Plaisance em Saint-Emilion,

(fonte: voyagerluxe.com)
dirigida por Philippe Etchebest que executa, nas suas palavras, "uma cozinha moderna, respeitando o produto e introduzindo, através de toques impressionistas, notas do exterior, apreendidas no decorrer das suas viagens. A arquitectura dos pratos é um parâmetro importante, mas o que importa em primeiro lugar é o gosto e a justeza dos acordos entre os ingredientes que comporão os pratos a degustar".

Disfrutem!

RECEITAS:

Magret de Canard fermier des Landes farci aux champignons et jambon de Bayonne 
(do site qualitelandes.com)


Ingredientes:
- 2 magrets de pato
- 200 gr de champignons de paris
- 2 fatias de presunto com 3mm de espessura
- 30 gr de manteiga
- 1 c.sopa salsa picada
- 15 cl de caldo de galinha

Recheio:
Limpe e corte os cogumelos em pequenos pedaços, corte as fatias de presunto em pequenos cubos. Refogue os cogumelos na manteiga. A meio da cozedura acrescente o presunto, frite durante alguns minutos, tempre e junte a salsa.

Carne:
Abra delicadamente os magrets no centro do lado da carne até atingir a gordura. Guarneça o interior com o recheio preparado anteriormente. Feche, carregando na carne ligeiramente. Ate com fio. Coloque-os num pirez e leve-os ao forno durante 15 minutos. Reduza o caldo de galinha numa caçarola com uma noz de manteiga.

Suprêmes de Poulet fermier des Landes aux tomates séchées et basilic
(do site qualitelandes.com)


Ingredientes:
- 2 peitos de frango de campo
- 8 tomates confitados marinados em azeite
- 1/2 ramo de majericão
- 2 c. sopa de azeite
- 5 cl de vinho branco seco
- Sal, pimenta

Seque o tamte numa folha de papel absorvente. Separe as folhas do manjerição e depois corte-as grosseiramente.
Fatie os peitos no sentido longitudinal sem os separar completamente. Preencha com o tomate e manjericão. Tempere.
Aqueça o azeite em lume forte, coloque os peitos e dore-os delicadamente 3 a 4 minutos de cada lado sem deixar acastanhar.
Acrescente o vinho para deglacear. Deixe ferver por 1 minuto, baixe o lume e tape. Deixe cozinhar durante 20 minutos, virando as peças uma ou duas vezes e molhando-as regularmente com o molho.
Para servir, corte os peitos em 8 pedaços e mantenha cada parcela no lugar com a ajuda de um palito. Sirva imediatamente.

Sauté d’onglet de bœuf de Chalosse aux petits légumes et au gingembre
(do site qualitelandes.com)


Ingredientes :
- 800 gr d’lombinho de vaca de Chalosse
- 2 cenouras
- 2 courgettes
- 200 gr de ervilhas francesas
- 1 c. sopa de gengibre fresco picado
- 4 c. sopa molho de soja
- 3 c. sopa azeite

Descasque as cenouras, corte-as em juliana, bem como as courgettes. Mergulhe as ervilhas 2 minutos em água a ferver salgada e refresque-as em água com gelo. Coza em azeite cenouras e courgettes 6 a 8 minutos num tacho deixando-as crocantes. Acrescente as ervilhas, gengibre, sal e pimenta. Corte a carne em fatias muito finas. Retire os legumes do tacho. Acrescente um pouco de azeite, frite os pedaços de carne 2 minutos. Deglace com o molho de soja, tempere com pimenta e sirva logo com os legumes.

Tartare de kiwi de l’Adour et crevettes à la citronnelle
(do site qualitelandes.com)



Ingredientes :
3 kiwis de l’Adour
24 camarões cozidos
1 c. sopa de erva príncipe
80gr de rebentos de soja
2 ramos de coentros
2 c. sopa molho de soja
3 c. sopa azeite

Descasque os kiwis e corte-os em pequenos cubos. Retire a casca aos camarões, corte-os em pedaços. Pique grosseiramente os rebentos de soja. Misture num recipiente o molho de soja com o azeite a erva principe e os coentros picados. Acrescente os kiwis, camarão e rebentos de soja. Misture e conserve no frigorífico antes de servir sobre tostas.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Casa de Goa, um sério restaurante

Ali para os lados de Alcântara, na rua que, em curva, desce do Largo das Necessidades para a rua Prior do Crato, fica a Casa de Goa, restaurante integrado no complexo cultural goês que há já alguns anos, a comunidade local decidiu construir numa boa arquitectura, sem concessões a evocações regionalistas ou pseudo-etnográficas.


Tem parque de estacionamento próprio - o que, face aos constrangimentos que a Lisboa actual impõe aos automobilistas é sempre bom - situado a uma centena de metros (entrada pelo portão que se segue ao do edifício, um pouco mais abaixo na rua) o que é sempre bom para obrigar os convivas a um pequeno exercício de queima de calorias.


O espaço interior é simpático, mais uma vez pouco dado a folclores, de madeiras e betão à vista, muito longe das cores e do ambiente de féerie que o nosso imaginário ocidental se habituou a associar ao subcontinente.


O exotismo fica por conta da culinária, um exotismo contido já que a gastronomia tradicional goesa tem tantos pontos de contacto com o que nos habituámos a considerar como luso que somos tentados a considerar estarmos perante uma provocação oriental da nossa cozinha. Não é provocação, antes a recriação local, iniciada pelos primeiros invasores portugueses, das memórias culinárias levadas da metrópole, com os ingredientes e os modos de confeccionar locais. Ressalve-se que, conforme bem relembra Orlando da Costa na introdução ao que será, até agora, a mais importante recolha publicada em português - "Cozinha Indo-Portuguesa" de Maria Fernanda Noronha da Costa e Sousa -, por "gastronomia tradicional goesa" me estou a referir à cozinha de fusão indo-portuguesa iniciada há cerca de 500 anos com a chegada e ocupação portuguesas. Fusão iniciada com os portugueses e continuada nas famílias miscigenadas ou cristianizadas.


Quanto ao que se pode experimentar. Não sendo especialista, não posso julgar o nível de respeito à tradição que os pratos têm. Posso, no entanto, julgar o sabor, o cuidado, variedade - todos muito bons.

Serviço atento, guardanapos de pano, facilidade de estacionamento boa.

Nota final: 4/5. Brindemos pois.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Culinária de Lisboa #6 - Sopa de Ameijoas

"Querida Mô,

Lisboa tem destas coisas, deambula uma pessoa por ruas de arquitectura anónima, de amargura colectiva, e de repente, uma nesga do rio que aguarda, displicente, numa esquina, revela-se na sua tentação. É um chamamento, é só um chamamento, mas tão poderosamente efectivo que se transforma numa ordem. 


Eu que reflectia nestes azares da hereditariedade, neste destino não alterável do código genético que me foi legado, triste, triste, porque me estava mentalmente a despedir de todos os prazeres da mesa que fui ao longo dos anos aprendendo a coleccionar, dei comigo a pensar no rio, a dirigir os meus passos na direcção do rio, até que, atravessando a via férrea, me vi face a face com ele num entardecer magnífico, num desses entardeceres magníficos de Lisboa, um entardecer que me afagou e fez esquecer a melancolia e a soturnidade de alma cesarianas.


Sou um lisboeta sem emenda, o rio, à vista ou apenas pressentido, é o meu oxigénio, sem a sua sugestão sou como um amante do Romantismo, a morrer da ausência.


Quase me sinto como Campos, olhando o paquete que entra a barra na manhã de Verão, só que estes cabos evocam inversamente, não o desejo das viagens, a promessa da descoberta que elas aportam, antes a prisão das restrições alimentares e o ocaso no céu é, ao invés de uma saudação, uma despedida, o crepúsculo da deusa gastronomia.


Eis-me refém do passado, porque irrepetível de ora em diante. Restam-me memórias, coleccionismos de momentos. Não um AHÒÒÒÒÒÒÒÒÒY / Schooner AHÒÒÒÒÒÒÒÒÒY, antes, por exemplo, umas ameijoas comidas há anos, num tasco aqui perto, metade delas transformadas numa sopa que me deleitou os sentidos.

SOPA DE AMEIJOAS

2 kg de ameijoas; 1 cebola; alho; 300 gr tomate; 1 dl azeite; 1,5 l água; sal e pimenta; cubos de pão frito ou torrado

. Corta-se a cebolas em rodelas e pica-se o alho. Refogam-se em azeite.
. Retira-se pele e sementes ao tomate, juntando-os ao refogado; deixar fritar um pouco e acrescentar a água.
. Abrem-se as ameijoas no calor, retiram-se das conchas e, juntamente com o líquido que largaram, coado, adicionam-se ao caldo.
. Tempera-se com sal e pimenta.
. Serve-se com cubos de pão frito. Ou torrado, em caso de ligar às preocupações contemporâneas com a saúde.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Mais uma noite no Assinatura

A equipa do Assinatura continua a trabalhar em grande forma e o Henrique Mouro no seu caminho para o estrelato. Mais importante, o crescente sucesso não parece causar mossa, mantendo-se em níveis elevados a simpatia, a disponibilidade, o excelente atendimento.

Um novo jantar, com um menu especial, novas descobertas entusiasmantes:






domingo, 24 de outubro de 2010

Camarão na Abóbora à moda de Olinda


JERIMUM FREVO: 

15 Camarões pré-cozidos e descascados
4 Lagostas pré-cozidas e descascadas
2 Xícaras de calda de maracujá
½ Cebola cortada em tirinhas
1 Colher (sopa) manteiga
1 Colher (sopa) azeite de oliva
1 Colher (sopa) mostarda
1 Colher (chá) tempera tudo
10 Frutos de zimbro
1 Colher (chá) endro
1 Jerimum jacarezinho de 1,½ kg
1 Colher (sopa) requeijão

Dore a cebola na manteiga e no azeite, acrescente a calda de maracujá com um pouco de água, tempere com o restante dos ingredientes, coloque os camarões e as lagostas, deixe cozinhar um pouco e engrosse com a maizena diluída na água, reserve. Abra o jerimum com um tampo, retire toda a semente, lave a casca com sabão e água, coloque no forno em um tabuleiro com água, deixe cozinhar entre 30 e 40 minutos. Depois do jerimum cozinhado, recheie com o creme de maracujá já preparado e finalize com a colher de requeijão.

Restaurante Oficina do Sabor,
Rua do Amparo, 335, Cidade Alta, Olinda - PE, Brasil

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Culinária de Lisboa #5 - Canja de Galinha Saloia

Querida Mô,


Panaceia lisboetamente universal para a recuperação de qualquer acamado, a canja de galinha da nossa infância encontra-se praticamente em vias de extinção na sua forma original face ao progressivo desaparecimento da matéria-prima essencial: uma galinha “caseira”, criada com amor e engordada com esmero.
Não faltavam na Lisboa do passado - na Lisboa de saguões onde raparigas da terra trazidas a servir se deixavam engraçar por marçanos afilhados subindo a hierarquia laboral à custa de muito transportar calçadas e escadas acima as compras de entediadas freguesas, na Lisboa de logradouros feitos quintais de porteiras enjauladas em cubículos insalubres, na Lisboa de recantos roubados a traseiras escondidas –, em capoeiras improvisadas onde, entre “cócós” e pedrezes, capões e galarós, poedeiras e pintadas, cresciam e sobravam dignos exemplares para despertar a gula ou anular o fastio de cada um, conforme a ocasião.

Lisboa estava cheia de “criação”.

(Repare como os diversos significados do termo evoluíram em conjunto: dizia-se de quem se sabia comportar socialmente que era educado, que tinha maneiras, que era bem-criado (provavelmente pelas canjinhas que a velha criada ou a avó ou a mãezinha tinham preparado na infância ou adolescência, prolongadas por certo, pela mão consciente da esposa burguesa); hoje em dia, queixam-se os mais velhos – perante as ignorâncias da mocidade, os atropelos dos novos-ricos, o desleixo de meio-mundo – de que isto é um país de mal-criados. Pois mal-criados seremos, se nem já criação há em número suficiente para encher de produtos legítimos a mesa de todos nós.)

E a que chave haveria de recorrer Eça de Queirós, lisboeta de adopção, para abrir um entediado e cosmopolita Jacinto às delícias do sentir português, senão à inevitável canja?:

“(...) era de galinha e rescendia. Provou e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, um espanto – Está bom!

Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.

- Também lá volto! – exclamava Jacinto, com uma convicção imensa. – É que estou cá com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.

Foi ele que rapou avidamente a sopeira.(...)” [na A Cidade e as Serras]

“Canja” era, em similitude com o prato, tudo o que se fazia depressa e bem. Hoje em dia, nada parece ser “canja” neste Portugal que começou a entristecer nas palavras dum outro lisboeta órfão de sopas caseiras e não pára de se desconsolar. De nos desconsolar.

Perante umas serras desertas e uma cidade que de noite desaparece...

CANJA DE GALINHA SALOIA

1 galinha gorda com miúdos – 1 cebola – salsa – 2l de água – arroz agulha, q.b.

Colocar a galinha na água salgada fria (de modo a que permitir que se desprenda da ave a maior quantidade possível de gordura e sucos) juntamente com a cebola e a salsa. Salgar (pouco! A saúde agradece). Cozer em lume brando, gentilmente, até a carne estar tenra e se desprender dos ossos (atenção aos frangos de aviário: ao fim de uma mão-vazia de minutos já o corpo ameaça desagregação, não constituindo sinal de canja rica. Aliás, ao usar frangos de aviário deve ter-se presente a menor valia que os mesmos oferecem).

Entretanto, cozer o arroz na proporção de 1-4. Deixar ligeiramente al dente e lavar em abundante água de modo a ficar bem solto.

Servir a canja com o arroz, a galinha desfiada e um esguicho de limão.

Duas ou três folhas de hortelã serão bem vindas por quem delas gostar.

NOTA: Pode-se estranhar a cozedura, à parte, do arroz. Preciosismo de quem precisa de mais de uma sessão para processar todo o caldo: se reaquecido, o arroz ultrapassa o ponto de cozedura e transforma-se numa pré-papa desagradável. Acrescentado frio ao caldo fumegante reaquecido não perde qualidades.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A França por regiões #2 - Aquitaine (I) - Pyrénées-Atlantiques



Aquitaine: o Sudoeste francês. Como Portugal, esta região está muito longe da homogeneidade, tanto geográfica como cultural. Limitada pelos Pirinéus, pelo Atlântico e pelo Maciço Central, nela convivem bascos e gascões, girondinos e landeses, unidos pela identidade nacional mas sobre um subestrato de identidades historicamente diversas, de que são manifestação as três línguas regionais - occitan, basque e saintongeais-  faladas essencialmente no mundo rural, por quase 10% da população.

Entrando na região pelo Sul, como compete a um lusitano descobridor vindo da espanhola A8, encontra-se um mundo que fala francês mas que é basco na matriz cultural, o que lhe esbate as diferenças para o outro lado da fronteira. St. Jean de Luz, Biarritz, Bayonne, numa sucessão de ecos de um passado estival grandioso, de hoteis fin-de-siécle, famílias burguesas em férias anuais com criadas de fora, amas, gentleman's gentlemen, mas também de uma actividade piscícola florescente até ao escoar dos stocks no Golfo da Biscaia numa primeira fase (o que levou as frotas a buscarem as longínquas paragens da Terra Nova), e aos rearranjos europeus concertados em Bruxelas.


Estamos no departamento dos Pyrénées-Atlantiques composto pelo País Basco Francês e pelo Béarn.

País Basco onde impera, rei, o pimentão/Piment d'Espelette


espécie de faz-tudo culinário basco, maria-vai-com-as-outras gastronómica que perfuma e coloriza a maior parte dos pratos tradicionais. Única especiaria seca produzida em França, este pimentão está igualmente disponível numa ampla gama de condimentos - como o puré (usado como mostarda) ou a geléia de pimentão. É especialmente efectiva numa grillade ou num pot-au-feu, mas é igualmente deliciosa como integrante da Bayonnaise, numa emulsão de óleo e gema de ovo.

Os bascos franceses têm igualmente o "seu" queijo, o ardi gasna, queijo de ovelha que casa na perfeição com a compota de cerejas pretas local.


Com uma zona delimitada que se prolonga pelo vizinho Béarn, o Ossau-Iraty tem denominação de origem controlada e é igualmente um queijo de ovelha.

O Jambon de Bayonne concorre com os seus primos espanhóis na fama e no sabor. Tem Indicação Geográfica Protegida, comum ao Béarn

Experimente-se degustar o Ardi Gasna desta maneira: Colocar num refractário cubos de batata cozidos em vapor, cobrindo-os com fatias de queijo de ovelha. Colocá-lo no forno até que o queijo esteja derretido e ligeiramente dourado. Um pouco antes do final, acrescente um pouco de natas.

Dos pratos tradicionais, salientem-se o ttoro [tioro],

(Autoria: Dairian, Picasa album)
um prato a meio caminho entre o guisado e a sopa de peixe, originalmente à base de bacalhau, recorrendo-se no presente à pescada e ao congro, entre outros peixes brancos, para além de vários bivalves (mexilhão, principalmente) e lagostins; o  marmitako,

(Fonte: Wikimedia commons)
uma preparação à base de atum, tomate e batatas, pimento, alho e cebola; o merlu koskera

(Autoria: Chantal; ver receita aqui)
um prato de pescada; o bacalhau/bakalao al pil-pil (ver receita aqui).

No interior, encontra-se uma cozinha mais próxima da tradição pastoral, constituindo o porco e o carneiro a base da maioria das preparações culinárias.

O zikiro,

(Fonte: Diario de Navarra)
é uma churrascada comunal de pernas de cordeiro, acompanhadas de feijão branco e de um molho  de preparação "secreta"; o axoa [achoa]

(Fonte: Wikipedia)
é um guisado de pedaços de cordeiro e pimentos vermelhos (com inúmeras variações posteriores no ingrediente principal); a pipérade,

(Fonte: Wikipedia)
um molho à base de pimentos, cebola e tomate, acompanhante de inúmeros pratos, um dos quais o célebre poulet basquaise.

O taloa

(Fonte: Wikimedia commons)
é uma espécie de crepe feito originariamente com farinha de milho (hoje em dia metade-metade com farinha de trigo), podendo ser consumido com açúcar ou salgado, enrolado em volta de uma boa fatia de presunto de Bayonee ou de queijo fresco de ovelha.

O Béarn, mercê das memórias de uma retinta série de ORTF dos anos 70 foi sempre para mim terra de excessos e bravuras medievais, corporizadas na lendária figura do 3ª conde de Foiz, Gaston Phébus.



Mais recente é a memória da bela Adjani-Margot casada por interesses politico-familiares com Henrique de Navarra, tendo como cenário o convento de Mafra, segundo S. Patrice Chéreau.



Contrariamente ao que o nome fará pressupor o único prato com o nome da região - o sauce béarnaise - foi inventado em Paris, pelo verdadeiro criador das batatas insuflada, provavelmente em homenagem ao rei Henrique IV. Mas o Béarn tem pratos seus, para além dos comungados com os seus vizinhos bascos:

A poule au pot 

(Fonte: Wikipedia)
que não é mais do que um cozido de galinha com legumes (cenouras, nabos, alho francês, cebolas, cravinho) mas que aroma, que riqueza de sabor!

A garbure 

(Fonte: Wikipedia)
é uma sopa de couve, com pedaços de legumes e carnes diversas, cozinhados lenta e longamente. A diversidade é exigida: do lado dos legumes, lombarda,  feijoca ("haricot maïs du Béarn") fresco ou seco, favas, ervilhas francesas ("mange-tout"), batatas, nabos, ervilhas, cebolas, às vezes cenouras, aipo bola, alface, castanhas; do lado das carnes, coxas de pato, confitadas na sua gordura, mas a carcaça e os seus miúdos, joelho de porco seco, o osso de um presunto, um pedaço de pescoço de porco, salsichão, morcela não  são desconhecidas na preparação.

Quanto aos vinhos, as duas províncias produzem, Jurançon e Jurançon sec; Madiran e Pacherenc du Vin Bith; Béarn Bellocq; Irouléguy, este com Denominação de Origem Controlada (ver características e maridagens aqui).

(Fonte: OrganicWineJournal.com)