sexta-feira, 1 de julho de 2011

Culinária de Lisboa #32 - Ameijoas à Bulhão Pato

Querida Mô,

Uma das vantagens que a sua ida para o Brasil lhe trouxe -  tão cedo desta vida descontente... - foi o não ter tido de passar pela provação de aturar as palavras do Garrett nas Viagens na Minha Terra. Mesmo para os catorze anos daquela altura, o Garrett era um verdadeiro chato - páginas e páginas de dissertações sobre tudo e mais alguma coisa menos a única que eventualmente! nos interessaria e que era o romance entre a Joaninha e o Carlos. Atirar uma obra séria às feras que quaisquer adolescentes são não só é um livrocínio - em adultos poucos lhe voltarão a dedicar um mínimo de interesse - como um desperdício da curiosidade natural de quem cresce. Eu fiquei para sempre imune às eventuais delícias escondidas na obra do grande romântico nacional sendo a única recordação que permaneceu a professora que teve a incumbência de no-lo servir... frio.

Era uma senhora curiosa essa professora à antiga. Pequenina, sublimara a frustração que eventualmente sentia ao ter de levantar a cabeça para falar com uma turma de galfarros altarrões criados a bifes de vaca, a divertir-se a sublinhar sarcasticamente os naturais erros de interpretação que a turma insistia em fazer sobre as palavras do pai do Teatro Nacional. Queríamos nós lá saber do Vale de Santarém e do país no século dezanove e de mais não sei quê!

Uma ideia houve, no entanto que me ficou dessas aulas sonolentas - a de que, ao contrário do que a geração subsequente defendeu, o Romantismo não morreu e a nossa sociedade é, na sua essência, profundamente romântica.


Passeio Público,
Carta Topográfica de Lisboa, 1856, Levantamento sob a direcção de Filipe Folque

Talvez. Escrevo-lhe isto e penso se Lisboa se adapta à tese. A cidade que assistiu Garrett não é mais a mesma - cresceu desmesuradamente a partir dos anos sessenta do seu século, numa fuga para o interior que ainda hoje se mantém. O Passeio Público foi substituído por uma largueza de avenida. A razão, traduzida na ortogonalidade, na clareza, no primado da função sobre a forma... a substituir o palpitar do eu, a paixão do eu, a subjectividade... Curiosamente - ou não - a fachada do Teatro Nacional é de influência neoclássica. O seu maior legado preso a uma estética do passado. Te-la-ia aprovado no seu íntimo?

Quem a todas estas metamorfoses da cidade assistiu foi o seu contemporâneo, também poeta, Bulhão Pato, morto já no século seguinte, uma personagem deslocada no tempo, justa ou cruelmente considerada inspiradora da figura do poeta Alencar d'Os Maias. Triste ironia de vida, sermos mais lembrados pelo que deixou de ser do que pelo que fizemos!... Bulhão Pato, poeta romântico menor, autor do "Paquita" de fugaz sucesso? Ah, quem se lembra? Bulhão Pato o homem que inventou - ou foi o grande divulgador - do mais simples, do mais genial, do mais perfeito modo de elevar as ameijoas ao Olimpo dos manjares, isso sim, o acto que lhe garantiu a imortalidade. Quem foi, o que fez com o resto da sua vida, quem amou, de quem foi amigo dedicado... Tudo pó, tudo pó, como de todos nós um dia será. Mas as ameijoas... Libiamo!


AMEIJOAS À BULHÃO PATO

1 kg ameijoas; 1 molho coentros; 1 dl azeite; 3 dentes de alho, laminados; 1 limão; s&p.

PRÉVIO: Colocam-se os bivalves em água salgada para largarem a areia.

PREPARAÇÃO: Num tacho, juntam-se todos os ingredientes à excepção do limão e aquecem-se em lume brando até todas as conchas estarem abertas. Tacho tapado, claro. Retira-se do fogo e rega-se com o sumo do limão.

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