quarta-feira, 20 de junho de 2012

Zé da Mouraria


Eufrásio estugou o passo: era o seu primeiro dia e não queria chegar atrasado. Muito atrasado. O trânsito caótico e a dificuldade de entrada no parque subterrâneo tinham já arruinado a substantiva antecedência com que iniciara a viagem. Atravessou o terreiro do Martim Moniz, a distrair-se com as novas barracas de cozinha étnica à maneira - que não à imagem decadente dos prédios em redor - da composição sociológica da zona. Superior às suas intenções, a curiosidade impôs-se e Eufrásio inspeccionou curioso as ofertas cada uma. Cozinha da América latina; da China; do Japão; da África de língua oficial portuguesa... 






Abria a boca para pedir uma Causa limeña e um Pisco sour quando se lembrou do compromisso e do atraso - Eufrásio o distraído, pensou, sorrindo. I'm late, I'm late, I'm so horridly late, como o gato de Alice, hum... o coelho de Alice que o gato é mais Gal e Alice mais Tim Burton... (tens de parar com as associações desastradas, Eufrásio, comida é comida, conhaque é conhaque)

As traseiras do Centro Comercial descobriam antigas arquitecturas, envergonhadas arquitecturas, feitas por mãos simples e saberes antigos. (Nunca estive em Macau, será assim Macau - sinogramas sobre construções lusas?) Rua do Capelão à direita, o fado na parede, lojas chinesas, arrumadores indo-paquistaneses, um agarrado ocidental à frente, as mãos perdidas num movimento involuntário.


Finalmente as portas verdes com tabuinhas e no interior os seus anfitriões. Desculpas breves, uma taça de três para amenizar o embaraço e um brinde aos projectos em embrião.

Eufrásio relaxou e perdeu-se na discussão - duros interlocutores de conhecimentos fundos e maior brilho. Felizmente os objectivos revelaram-se comuns e as estratégias idênticas: entrecosto para abrir, iscas para completar.

No seguimento de um comentário a vol d'oiseau, descobriram-se uns envergonhados - e clandestinos - filhotes de carapau em repouso discreto no expositor. Que viessem em pirezinho, assim à moda modesta de um oitocentos queiroziano, coisinha de muito pouco, só para tira-gosto e abre-o-apetite, mais bombom que prato de substância. O empregado empertigou-se, aguilhoado o orgulho pelas doses de leão da casa, que não seria de mais... Saltaram-lhe em cima três sobrolhos em defesa da honra, de mais? de mais é o apetite, venham de lá esses jaquins. E o arrozinho, é de tomate, acentuou o empregado. Homem, traga só os bichos que são de início e não de viagem...

O Homem vingou-se com uma travessa familiar que só serviu para aguçar a gula da mesa. As primeiras dentadas ditaram sorrisos de aprovação: boa fritura, sem exageros que a dimensão desaconselha prolongada exposição sob pena de transformação em torresmos. Um mimo.

Travessa limpa, prontos para a pianola suína que chegou sem tardança, um convite à gordura nos dedos, grelha correcta.


Já as iscas desiludiram em comparação com as experiências de outras tabernais paragens, o molho bem apaladado, no entanto, a pedir sopas de pão.


Aproximou-se o empregado, lista na mão, a inquirir pela sobremesa. Sobremesa? Então e não almoçamos primeiro? Estocada derradeira, passagem às meias-finais e três cafés que estamos de dieta...

Eufrásio recostou-se, tranquilo e satisfeito. Belíssimo princípio de tarde, bem lisboeta, bairro antigo, bom vinho, santa comida e palavras, palavras em danças sucessivas de corridinhos e desafios. Que mais pode um alfacinha querer...

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