sábado, 27 de abril de 2013

Cozinha Nota a Nota

(em simultâneo, parceria e emotividade com a Neurogoumet)



A Gastronomia molecular, o "estudo dos mecanismos dos fenómenos que ocorrem durante a preparação e consumo dos cozinhados", é uma disciplina científica iniciada, no final dos anos oitenta, pelo químico francês Hervé This e pelo físico húngaro (estabelecido em Inglaterra) Nicholas Kurti (falecido em 98).

Actualmente, foca-se em quatro vectores - a exploração científica das "definições culinárias", a recolha e teste de nova informação técnica; a exploração científica do aspecto artístico da cozinha; a exploração científica do aspecto social da cozinha - definidos por This em 2004.

Uma das aplicações da disciplina foi a agora mundialmente reconhecida "cozinha molecular", cuja definição, ainda segundo This, é "produzir comida (isto é, cozinhar) usando ferramentas, ingredientes ou métodos "novos"" - entenda-se como "novo" o que antes não era utilizado nas cozinhas ocidentais nos anos 80, como  o alginato e o cálcio (para as esferificações, esferas sólidas com interior líquido), o azoto líquido (para os sorvetes), os hidrocolóides como o agar (para novos tipos de geis, comuns nas cozinhas orientais); os sifões (para fazer espumas), o rotovap (para essências de todos os tipos) ou outros equipamentos usuais nos laboratórios de química

Pouco dado a estacionamentos temporais muito prolongados, This evoluiu. E perante o número de compostos identificados e isolados de cada alimento que se ia avolumando na sua base de dados, o que começou por ser uma tentativa de melhorar alimentos e pratos, ganhou peso e transformou-se numa ideia que se consubstanciou num conceito: o da COZINHA NOTA A NOTA.

Porque não evoluir os gostos e as texturas a partir de todo um novo léxico de elementos? Deixar de parte os alimentos tradicionais e compor a partir dos seus componentes, criar novas experiências sensoriais num mundo saturado de variações da mesma origem, despertar novos mundos e novos olhares...

Com a colaboração entusiasmada do grande Pierre Gagnaire, os primeiros pratos foram criados e a Cozinha Nota a Nota vem fazendo o seu percurso.

No princípio deste ano, decidiram Hervé This, o site sciencesetgastronomie.com e o Institut des Sciences et Industries du Vivant et de L'Environnement (AgroParisTech) organizar o primeiro Concurso de Cozinha Nota a Nota, aberto a todos, profissionais ou amadores. A apresentar pelos concorrentes uma a três preparações alimentares, cada uma composta por duas ou mais partes de consistências diferentes, uma dura (crocante, quebradiça) e uma mole, em que cada parte deveria ser constituída por uma micro-estrutura heterogénea, feita de fase diferentes e de consistências diferentes.

Sendo o risco o que dá sabor à vida e a inconsciência a melhor maneira de enfrentar os riscos, decidiram estes yours truly Gastroboy e Neurogirlygourmet. - com a precisa, preciosa, prestimosa orientação da nossa Irresistível Química Paulina Mata, PhD - ... concorrer:

O tópico de partida foi o seguinte: construir o futuro partindo de conceitos tipicamente portugueses. Cheiros, sons, imagens, memórias...

Declaradamente não os mais subtis, antes os mais identificáveis, aliando-os à criatividade portuguesa mais internacionalizada: o mar e Pessoa, as cores e Eduardo Viana, as texturas e Joana Vasconcelos, a féerie e Paula Rego, as geometrias e Siza Vieira.


Duas preparações foram assim idealizadas: uma sopa e uma sobremesa.

A sopa: a areia à beira-mar, conchas, algas, a espuma da rebentação e uma onda que tudo leva.





Uma sopa de frutos de mar, escondida numa concha, algas-esferificações de essência de coentro, areia de óleo de camarão, uma crocante hóstia em forma de coração.








A sobremesa: um mundo à volta da ginja, a quintessencial fruta de Lisboa e das paisagens do país em flor.


Uma ginja em géis diferenciados, caroço de manteiga de cacau e Peta Zetas, sobre um merengue sem ovo em cama de redução de extracto de ginjinha.




E assim vamos, nas asas do vento e do desejo...

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Sovina!

Há uma confrangedora paisagem de variedade na produção de cerveja em Portugal.

Tirando as duas big majors que, ainda assim, se vão esforçando, desde há alguns anos, por diversificar a oferta, pouca produção independente se consegue encontrar.

À venda na Taberna da Rua das Flores, temos esta "Sovina" de origem nortenha.

Que bem que sabe. Duplamente.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Um Peixe em jeito de conclusão

Terminou a 6ª edição do Peixe em Lisboa que os deuses concedam país suficiente aos seus organizadores para continuarem o sucesso na 7ª edição.

Em modo quase telegráfico, aqui ficam algumas impressões do muito que tive oportunidade de ver, ouvir e saborear:

Do espaço

Da experiência no ex-pavilhão de Portugal não ficaram saudades tal este pátio acomoda bem quem visita e quem expõe. O efeito de estufa da cobertura plástica não chega a incomodar de bem contrariado que é pela instalação de ar condicionado, a área de restauração é aprazível, o auditório tem as condições possíveis mas suficientes para bem enquadrar os convidados.



Única contrariedade - da qual a organização não tem responsabilidade - é o assalto aos bolsos de quem, por vir de longe, chega de carro e tem de usar os parques de estacionamento locais. A que se junta o oficial e propositadamente caótico trânsito da Baixa. Já é conhecido este diálogo de surdos entre a mão direita dos poderes públicos que incentivam e patrocinam eventos como este e a sua mão esquerda que teima em afastar muitos dos seus potenciais consumidores mas continua a espantar...

Dos expositores

A crise é o que é ainda que o decréscimo nos produtores de vinho em exposição não tenha sido tão notório como no ano passado. Quanto aos restantes expositores, quase tudo caras e produtos conhecidos, o que não deslustra - antes pelo contrário: dos gelados da Ice Gourmet, do chef Bertílio Gomes, aos produtos Origemde Trás-os-Montes da chef Justa, do peixe fresco da Açucena Veloso aos cogumelos secos da Terrius, das compotas do Convento dos Cardaes aos chocolates Siopa, tudo são tentações a que se juntam os gadjets da Cesar Gastro, prestes a abrir uma loja em Lisboa.

Dos restaurantes

Novidades e regressos. O Assinatura voltou, proporcionando aos visitantes que o não conhecem uma oportunidade de descobrir as boas propostas do chef Henrique Mouro (ainda que leite creme de ostra me tenha causado grandes reticências). O nóvel Can the Can marcou presença mas o pouco que experimentei não me deixou saudades. O chef Paulo Morais (e já lá vão três anos desde que no Peixe em Lisboa de então anunciou para breve a abertura do Umai!) demonstrou o quão segura a sua mão continua. Ribamar, G-Spot, Avillez, Justa Nobre, continuaram com sucesso a presença dos anos anteriores.

Prego de Atum - Tasca da Esquina
"Corneto" de sapateira e abacate - José Avillez
Rolinhos de courgette - Can the Can

Assinatura

Travesseiro de Sintra na nossa versão - G-Spot

Das apresentações

A serem tratadas indivualmente nos próximos dias. O leque de chefs convidados prometia uma sessão com muitos pontos de interesse, confirmados nuns casos, uma desilusão noutros.

Em altíssimo, refulgente destaque Mauro Uliassi, Pepe Solla e Tomoaki Kanazawa.



Grandes chefs, com elevada capacidade de comunicação, de uma simplicidade e simpatias desarmantes e a demonstrar que com muito pouco se conseguem alcançar enormidades. Belíssimos pedagogos que entendem estas apresentações mais como uma oportunidade de passar uma mensagem - seja a da defesa dos produtos de qualidade ou da qualidade necessária da preparação dos mesmos - e de ensinar, do que um mediafone preparado para divulgar o seu pretenso brilho ou notoriedade. Junto a este trio, Bertílio Gomes. Sem feitio para exibicionismos - no palco ou no prato -, com as mesmas armas dos atrás citados - simpatia, simplicidade, pedagogia -, confirmou o que dele conhecia. Técnica, atenção, criatividade sem fogos de artifício.



Logo a seguir, como é sempre habitual, José Avillez que será o chef português com maiores capacidades de comunicação e de preparação das suas apresentações. Inovação, brilhantismo, numa linha consistente com o apresentado o ano passado.

Grande também a apresentação de Virgilio Marinez, o jovem chef peruano que divulgou alguns dos produtos do seu cada-vez-mais-nas-bocas-do-mundo-gastronómico país e foi o autor da frase que mais me fez reflectir por estes dias: "Valerá a pena falar de produtos gourmet e de jantares de luxo quando metade da população do meu país não tem nada para comer?"


Uma descoberta a seguir com atenção - ainda que não partilhe por enquanto o entusiasmo de Paulina Mata - foi a das propostas da chef Marlene Vieira. Pratos visualmente cuidados - femininos, sim, mas femininos pela atenção aos pormenores, pelas notas de cor - mas que me deixam ainda algumas reticências nas combinações de sabores - que poderão ser mitigadas pela visita que me parece vir a ser próxima ao Avenue.



Muito prejudicado pela total incapacidade de comunicação foi o chef francês Adrien Trouilloud. Técnica apurada, pratos pouco mais que tradicionais.

Igualmente tradicionais os pratos escolhidos pela chef brasileira Bella Masano, no que me pareceu ter sido uma dupla oportunidade perdida. Porque poderia ter trazido exemplos da culinária inventiva que a tem vindo a celebrizar (uma moqueca, mesmo à sua maneira, ou umas lulas recheadas não são propriamente motivo para atravessar o Atlântico...) e, já que partia de pratos tradicionais, poderia ter melhor explicado os quês e porquês das variações por si introduzidas.

Finalmente, as desilusões - e só nos desilude a quem nós queremos, não é?...

Alexandre Silva, a quem a estadia no Alentejo parece ter destruído a vontade de inovar, com propostas situadas num limbo entre a cozinha tradicional alentejana e a cozinha de autor. Terão sido os trabalhos de realização dos dois videos apresentados que lhe roubaram o tempo para a criação? Macambúzia, desinspirada, uma apresentação a que preferia não ter assistido.

Outro tipo de desilusão trouxe-me a apresentação do chef Vitor Matos, autor de uma das mais memoráveis refeições da minha vida. Pratos de um barroquismo exasperante - onde nenhum ingrediente parece ser de mais - e uma falta de rigor nas afirmações que fica mal a um chef "estrelado": "cozinha molecular" é toda a cozinha e, quando se recorre a esferificações, espessantes, gelificantes e toda a restante panóplia de soluções e técnicas que são (foram) bandeira dessa mesmo impropriamente chamada "cozinha molecular" fica mal anunciar as criações como não sendo de "cozinha molecular".


Fica de fora Vitor Sobral por não ter tido hipótese de estar presente na sua apresentação que hoje fechava o Festival.

Do futuro

Escrevi-o o ano passado e volto a escrever. Não será tempo de começar a pensar que a potencialização do futuro passa igualmente pela recuperação e relançamento de partes do passado?

Face às vicissitudes económicas tanto do país como da Europa, face ao que me parecem ser as tendências mais marcantes para os próximos anos na gastronomia mundial - a atenção aos produtos e modos locais, aos modos de preparação mais ancestrais e mais simples, às preparações muito leves -, não será tempo de começar a ousar trilhar um novo caminho que passe por introduzir representantes tanto da cozinha mais popular como da reintrodução de propostas ancestrais da tradição culinária da cidade?

Porque é que os "maneizinhos" inventados por Avillez têm honras de auditório e os "jaquinzinhos" - de que há registos serem vendidos junto ao porto pelo menos desde o século XIV - são ignorados?

Porque não se lança um concurso de caldeiradas - eu sei que as há em todas as cidades com porto de pesca... - em terra de fragateiros?

E porque continuamos, em semana de Peixe, a saber tão pouco das artes e dos seus saberes? De quantas variedades é constituído o melhor peixe do mundo? Em que meses se devem consumir? Como devem ser preparados antes de chegar à lota? Como devem ser preparados para as nossas mãos?

É preciso um japonês como o chef Tomo para no-lo ensinar? Pois que se lhe dê um palco e se juntem cadeiras à sua volta. Cá estaremos para aprender.

E para o ano haverá mais.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Portugal Gastronómico #103 - Albergaria-a-Velha

(Fonte: Wikipedia)
(Fonte: Viajar.clix.pt)
Produtos DOP e IGP:

Integrado na área de produção de:
  • Carne Arouquesa DOP
  • Carne Marinhoa DOP
  • Ovos moles de Aveiro IG

Bebidas:

Vinhos

Não está integrado em nenhuma área de produção.

Outras


Produção concelhia:

Pão do Fontão e da Albergaria-a-Nova


Produtores / Fabricantes:

"Casa Turco"
Rua 1º Dezembro 17 - Albergaria-a-Velha
3850-002 Albergaria-A-Velha
GPS: 40.692501,-8.478982


Pratos típicos característicos do concelho:

Leitão assado,
Rojões, febras de porco,
Vitela assada,
Coelho estufado com carqueja,
Caldeirada de peixe do rio, lampreia,
Caldeirada de enguias (em Angeja),
sopa seca que se agarra às costas.

Doçaria:

Bolo de gema de ovo,
Turcos,
Arroz doce (feito em leite e polvilhado com canela),
Roscas
Raivas,
Gemas,
Bilharacos,
Folares,
Regueifa de canela


Restaurantes referenciados:

"Casa dos Leitões"
Rua Desembargador Nogueira Souto,
3850-420 Angeja
(T)234 911 259


Eventos de teor gastronómico:


Agradecimentos:



Bibliografia:
Produtos Tradicionais Portugueses, Ed. M.A.D.R.P, 2001
Guia de Compras-produtos Tradicionais 2011, Ed. QUALIFICA/Publiagro
Vinhos e Aguardentes de Portugal, Anuário 2009, Ed. Instituto da Vinha e do Vinho I.P.
Boa Cama, Boa Mesa, 2011, Ed. Expresso
Guia Restaurantes e Vinhos de Portugal, 2008, Ed. Media Capital Edições
Guia 564 Restaurantes, 2011, Ed. Global Notícias Publicações SA


EM CONSTRUÇÃO - O post irá sendo actualizado à medida que novas informações sejam obtidas.
Achegas e comentários, bem vindos como sempre

terça-feira, 2 de abril de 2013

O forajar brasileiro de Alex Atala (I)

Apesar da criatividade latente em muitos dos cabeças de cartaz da, impropriamente denominada, "gastronomia molecular", a velocidade de propagação das suas ideias e propostas que a internet e uma cada vez maior atenção da comunicação social possibilitam, muito tem contribuído para a sua disseminação e consequente "vulgarização", transformando recentíssimas admirações em enfadadas repetições à escala mundial.

Para conservar parte da sua identidade e acrescentar algo de muito próprio e dificilmente repetível, uma das tendências mais visíveis da vanguarda culinária mundial é a da procura de aproveitamento de produtos locais culinariamente pouco explorados, abandonados ou ignorados. Esta procura, igualmente influenciada pela cada vez maior consciencialização da pegada ecológica deixada pela globalização do comércio agrícola mundial e pelos sentimentos de solidariedade e de atenção para com os "fellow citizens" (ver o que escrevi sobre localvorismo), começa a ter resultados visíveis - o Noma, em Copenhaga, é um bom exemplo do binómio sucesso mundial / criatividade "local".


No universo dos chefs falantes em português, o brasileiro Alex Atala (quiçá por, para além do seu talento culinariomediático, ter sabido alinhar com a onda da frente da relevância mundial) tem procurado desenvolver criações recorrendo à inesgotável fonte de novidades e exclusividades que o seu país apresenta, principalmente na zona amazónica. Eis alguns dos produtos investigados e que me motivaram a curiosidade...

Jambu

(Fonte: http://come-se.blogspot.pt)
O jambu é muito utilizado nas culinárias dos estados brasileiros do Norte - Pará, Amazónia, Rondônia e Acre. Os pratos mais emblemáticos onde é utilizado serão o tacacá e o pato no tucupi.

Tacácá
(Fonte: http://www.santaremtur.com.br/br/noticiaseventos/tacaca-delicia-tradicional-paraense/22/)
Mais marcante do que o sabor é a capacidade de anestesia de lábios e língua de quem a mastiga, sendo a mesma mitigada pela cozedura.

Em Portugal é comercializado  - na época dele - pela Quinta do Poial.


Priprioca

Priprioca e pudim de leite com ela aromatizado pelas mãos de Neide Rigo (chapeau!)
(Fonte: http://come-se.blogspot.pt/2009/07/priprioca-resposta-ao-post-anterior.html)

"A priprioca ou piripirioca (Cyperus articulatus), é uma erva da espécie ciperácea, aromática e medicinal natural da Amazônia. Parente do junco e do papiro, suas raízes liberam uma fragrância leve, amadeirado e picante com notas florais." (Wikipedia)

Atala interessou-se pela fragância da planta e procurou a sua adaptação a usos culinários. Acabaria por conseguir a extracção do óleo elementar a partir da raiz, com usos culinários semelhantes aos da baunilha que emprega em variadas preparações, de caipirinhas a sobremesas.

Leia-se o chef, em discurso directo (fonte: http://prazeresdamesa.uol.com.br/exibirMateria/1308/mais-vale-a-floresta-em-pe-do-que-deitada):

"Como todos sabem, sou um apaixonado pela Amazônia. Sempre que posso, passo por lá. Tenho interesse por qualquer pesquisa ali desenvolvida, pergunto e quero saber tudo sobre todo e qualquer ingrediente que os habitantes daquelas latitudes usam (assim como das demais regiões do Brasil). Numa dessas andanças, certo dia deparei com priprioca. Cheirinho bom. É engraçado, mas naquelas barraquinhas do mercado Ver-o-Peso, em Belém, PA, vendem uma mistura que eles chamam de “cheirinho do Pará”. Esse cheirinho é encontrado em vários outros pontos do mercado, e é invariavelmente composto de priprioca e outras ervas e raízes, que variam conforme o bairro da cidade ou a região do Estado a que a barraca represente. 
Também me inteirei de pesquisas da indústria de cosméticos. E descobri mais sobre o uso de Spilantus e da priprioca em prol de alguns produtos de beleza. Spilantus é o nome científico do jambu, aquela erva que a gente já conhece e nos dá uma sensação “elétrica” na boca. Uma certa marca de cosmético fez um creme que ajuda a evitar rugas por meio dessa mesma propriedade do jambu. Há também perfume de priprioca. Só sei dizer que quanto mais eu sabia sobre priprioca, mais fascinado ficava. Pensei, então, que, se um cheiro podia ser um gosto, priprioca poderia ser um ingrediente somado a minhas receitas.

Minha primeira e importante investigação foi descobrir se priprioca era comestível, se a raiz não continha nenhum agente tóxico. Ficou comprovado que o que há de tóxico na priprioca só é nocivo ao organismo humano quando consumido em grandes quantidades. Falo da ordem de meio quilo, o equivalente a um prato inteiro somente com esse ingrediente. Daí, concluímos que dá para usar a priprioca para compor receitas. Bem dosada, essa raiz não é nociva à saúde e, principalmente, traz à gastronomia uma nova possibilidade.
A primeira coisa que me fascinou nessa raiz, com formato de uma bolinha cabeluda, foi o cheiro. Ela tinha um cheiro que me era familiar e lembrava alguma coisa entre patchuli e maconha. Resolvi então fazer testes com esse aroma. Nesse processo, percebi que todas – todas, mesmo – as receitas que levam baunilha também podem levar priprioca. Assim sendo, ela é um sucedâneo. Ambas têm seu próprio caráter, e uma não substitui a outra. Mas, com ela, você pode dar uma nova nuance e caráter a velhas receitas ou a bases muito simples, como um crème pâtissière.
Pensando em tudo isso, resolvi criar uma receita com priprioca. Toda vez que deparo com um novo sabor e que tenho de introduzi-lo no universo palatável, gosto de fazê-lo de uma forma simples. Assim, o comensal pode julgar apenas aquele sabor. As receitas afetivas, aquelas que cultivamos desde a tenra infância, são de grande valia nessa hora. E é isso que ofereço neste mês a vocês. Um pudim de leite, que todos conhecemos, com caramelo de priprioca. Vamos aos passos. A cozinha moderna dispõe hoje de destiladores, chamados de RotaVal. (NG: Rotavapor em Portugal)

(Fonte: http://www.imlab.com/buchi/fr210215%20english.htm)

Há muito tempo, eles eram usados na indústria de perfumes, mas estão sendo recém-introduzidos na indústria de alimentação. Trata-se de um alambique que funciona em baixa pressão e que pode extrair aroma de coisas inimagináveis. Caso você não esteja interessado em adquirir esse novo equipamento, há outras maneiras de extrair o aroma da priprioca. Uma delas é a usada há anos para produzir perfumes: some priprioca a álcool de cereais, e deixe repousar por pelo menos 15 dias. Quanto mais priprioca você acrescentar, mais potente será sua base. Passado o tempo de descanso, provoque a evaporação do álcool para obter a essência da priprioca. Ela pode ser utilizada na receita a seguir para montar o caramelo de priprioca.

Mas preciso confessar que, assim que terminei o pudim, gostei da receita mas ainda não estava feliz com ela. Queria dar um passo à frente, tirar o óbvio e passar uma mensagem direta, mas mais rica em sua essência. Pensando em outras nuances que podiam ser acrescentadas àquela receita, lembrei-me da banana. Banana e priprioca me pareceram uma combinação muito boa. Então, fiz um ravióli de priprioca. A receita leva água, essência de priprioca e gelatina. Se tiver agar-agar, prefira-o à gelatina. Ele tem um agente gelificante que suporta por mais tempo a temperatura (e por isso demora mais a derreter). Fiz uma gelatina bem fina. Cortei uma folha. Coloquei uma pequena gota de crème pâtissière com um pouco de limão, para acrescentar uma nota ácida, rodelas bem finas de banana-ouro (a menorzinha que encontramos na feira, potentíssima no sabor e no aroma) e cobri-as com outra folha de gelatina. A seguir, coloquei ao lado do pudim de caramelo e a sobremesa parecia quase perfeita. Mas achei que ela podia ser ainda mais rica, mais complexa, trazer mais uma aplicação para a priprioca. Fui pesquisar, me divertir, remexer no meu baú de memórias e me lembrei dos cogumelos brancos típicos japoneses (kikurague) que são encontrados no bairro da Liberdade têm uma pinta de alga e uma consistência entre o crocante, o escorregadio e o melos. Bem, o processo de preparação dele é bastante simples, hidrate-o e cozinhe-o por 10 ou 15 minutos em água com priprioca. O resultado disso é muito divertido e gostoso. Para dar brilho ao que já era bonito, coloquei um pouquinho de ouro. E a receita, com o trio lado a lado, estava completa.
Gosto dessa receita por tudo o que ela tem e também pelo uso que estamos descobrindo de outro item de nossa floresta. Usando os ingredientes da selva amazônica estamos valorizando-a, estimulando seu uso consciente e sua conservação. Acho que essa é uma das melhores formas de fazer com que nossas florestas valham mais em pé do que deitadas. O extrativismo, a pesquisa são grandes aliados para esse fim. Porque quando paro e penso, fico estarrecido ao constatar que a indústria cosmética e a farmacêutica conhecem melhor a Amazônia do que nós, cidadãos brasileiros – e, por conseqüência, nós, cozinheiros."
(a continuar...)

(Aos curiosos: "forajar" é a mui pessoalíssima tradução de "foraging", o acto de procurar ou explorar recursos alimentares)